O que eu ouvi de legal de 13/02 a 12/03/2025
Shoegaze chinês, R'n'B do Quênia, Frafra gospel de Gana, grindestruction de Paraisópolis, e mais.
Olá de novo. Um mês se passou, e que lindo mês foi, não? Teve carnaval, um dos poucos momentos em que se reconhece a importância do brincar na vida adulta. E mesmo que você não brinque o carnaval, quem é que torce o nariz para um feriado de dois dias? Bom sujeito não é.
De forma que muito do que eu ouvi esses dias foi marchinha, axé, pagode, etc. Mas como infelizmente a vida não é só isso, eu tive outros sons gostosos para me ajudar a lidar com as partes mais ~~desafiadoras~~ da recolocação profissional, do trabalho informal, do transporte público caótico, e tal e coisa.
Por que me alongar mais? Sigamos.
Kristofer Maddigan — Cuphead (Original Soundtrack) (2017)
Isso aqui é meio velho, mas de vez em quando eu me lembro dele e sempre fico feliz, e reparei que eu nunca indiquei aqui. Cuphead é um jogo independente lançado em 2017 com um estilo visual que lembra desenhos animados antigos. O que mais nos interessa disso: a trilha sonora é ENORME e INCRÍVEL.
Ela foi composta pelo percussionista Kristoffer Maddigan, que arrasa no vibrafone em algumas faixas (saca a intro de "Threatenin' Zeppelin"). Mas ele não está só. Quase tudo é composto para orquestra de jazz, então os metais e sopros são onipresentes - e onipotentes. Quase tudo naquele estilo de jazz de big band antigão e de ragtime, com andamentos rápidos, melodias sinuosas, convenções impressionantes e até uns improvisos legais.
Se você juntar a trilha original com a expansão que saiu em 2022, dá mais de 4 horas de música. Nem eu acredito quando digo isso, mas já ouvi tudo (não de uma vez) e nada disso é ruim. Claro, há destaques. Eu adoro a divertida "Aviary Action" (que cita a Cavalgada das Valquírias no meio) e o projeto de samba "Floral Fury". E recomendo ainda "Coin-op Bop", que lembra música de gincana: coloque ela para tocar e tudo que você fizer se tornará difícil e cômico - ainda mais quando ela acelera.
E tem bastante variedade: "Clip Joint Calamity" é menos rápida, mas não fica devendo no suingue: "Pyramid Peril" traz escalas orientais; "Mausoleum" tem clima de assombração e "Elder Kettle (piano) é fofinha e suave. Lógico que vc não precisa ouvir tudo, mas eu te desafio a deixar essa trilha sonora rolando no shuffle por 15 minutos e não sorrir nem um segundo.
缺省Default — California Nebula (2017)
Até agora, minha impressão é de que o algoritmo do Tiktok é muito melhor para recomendar música (e muito pior para recomendar coisas detrimentais à solidariedade orgânica e ao sistema nervoso central) que o do YouTube. Exemplo disso é esse belo disco de shoegaze do conjunto chinês 缺省Default, lançado em 2017. E que foi sucedido por outros dois discos mais recentemente, os quais eu ainda não ouvi.
O quarteto de Beijing (se bem que eles eram um trio nessa época, segundo o Last.fm) é uma espécie de Slowdive asiático. Tirando a intro “一日入冬” (o inverno chega em um dia), dois minutos de guitarra introspectiva com reverb, as outras quatro faixas são longas e perambulantes. Os arranjos têm poucos instrumentos, mas cada um tem um timbre oceânico. Tipo as guitarras meio Sonic Youth de “将死之时掩以水门汀” (Cubra-se com cimento quando estiver prestes a morrer), ainda mais pro final, que é intenso.
Mesmo a bateria entra nessa. Na suave “鸽哨” (apito de pombo???), os pratos da bateria parecem um som de chuva caindo ao fundo, e o vocal, baixo na mixagem, deixa todo o resto soando mais envolvente. Em geral, os andamentos são bem lentos; combinados à sonoridade densa, dão um embalo gostoso que me deixa pensativo. Mas prestando atenção, há muita musicalidade aqui, tipo os arpejos meio Cocteau Twins e as linhas de baixo (quase um solo) da metade de “Moon Plate”.
Essa faixa, a quarta, se liga à quinta e última para formar uma conclusão monumental ao disco. Na metade de sua duração, o encerramento “Schwarzschild Drainhole” faz uma modulação rítmica e caminha para minutos finais ruidosos e pensativos, numa pegada meio Mogwai. Se um dia fizer frio de novo, vai ser muito bom ouvir esse disco debaixo de uma coberta.
discurso de pobre — Entre o Osso e o Ócio (2024)
Enquanto eu fazia sei lá o que em abril de 2024, o trio de “Grindestruction” de Paraisópolis chamado discurso de pobre lançou essa pérola afiada aqui. É rápido, é curto, é pesadíssimo: 9 faixas, 16 minutos. Mas é impactante como poucas outras coisas que eu ouvi daquele ano, e não apenas pela abrasividade do som.
O som da banda me remeteu a um pós-hardcore furioso. Não chegaria a chamar de Grindcore, mas não tá tão longe assim. Eu adoro o tênue equilíbrio entre caos e ordem nesse estilo, e eles dançam nesse fio de navalha de maneira magnífica. A abertura “Morte e Vida de um Menor” já começa com riffs ferozes e batidas rápidas, mas no final dá um cavalo de pau e entra num dub. E logo vem “O Roteiro Já Está Escrito”, treminhão descendo serra na banguela.
As letras são outro ponto forte. Primeiro porque, mesmo com a gritaria, dá pra entender bastante — mérito da articulação sobre-humana do vocalista, que canta sobre as desgraças da nossa sociedade naquela que, na real, é a única voz adequada pra esses temas. Mas também porque, só de ver os títulos das músicas, os salves já estão mais do que dados: “O Que É Pior Se Humilhar Ou Roubar?”, “Vida Longa, Mas Pouco Tempo a Se Viver”, etc. Cada uma com palavras, batidas e riffs à altura.
Entre o Osso e o Ócio é um trabalho primoroso. Não à toa: o grupo tem mais de 20 anos de estrada já, segundo o bandcamp, e realmente soa como um conjunto que sabe exatamente o que quer dizer e como. Espero que esse trabalho ajude a levar cada vez mais longe esse tipo de peso musical especial que nenhum outro lugar do mundo consegue fazer igual.
Florence Adooni — A. O. E. I. U. (An Ordinary Exercise In Unity) (2025)
Lá em 2023 eu ouvi (e amei) o disco do Alogte Oho, então eu já sabia que música frafra de Gana é do tipo que precisa ser manuseada com luva térmica. Mesmo assim, quando eu botei pra tocar esse disco da cantora Florence Adooni (também de Gana, também do estilo Frafra Gospel), me queimei. Esse álbum é um trabalho monumental, caleidoscópio, panorâmico, lindo e muito divertido.
Primeiro porque é uma banda grandona que toca! Além da cantora Adooni, tem baixo, guitarra, bateria, metais e mais. E eles já começam num ritmo doidão em “Mam Pe'ela Su'ure “, com um baixo sincopado e um arranjo cheio — que no entanto deixa espaço para a cantora brilhar. A sexta faixa, “Uh-Ah Song”, mostra melhor ainda a intensidade da banda, num andamento rapidão, com os metais mandando umas linhas muito rápidas, e a guitarra numa pegada meio Chimbinha solando junto.
Eles tocam mais lento também, como no 3/4 dançante de “O Yinne Te San Tue!”, no qual a voz e a flauta cantam em uníssono a melodia. Ou no groove delicioso do encerramento “Fo Yelle”, no qual a guitarra também brilha, dessa vez ao lado de um trompete arrasador. E a faixa-título? Começa lenta e bonita, com sax e piano matando tudo, mas depois eles ligam no 220 e rola um solo de sax foda, depois as percussões solam, e a cantora volta para encerrar tudo com uma letra bonita sobre o significado da música.
Essa faixa aí: 10 minutos de musicalidade da melhor qualidade. Esse disco? Sete músicas, 34 minutos de músicos inspiradíssimos, arranjos maravilhosos, e um gosto infeccioso pelo ato de fazer música. Sem nem falar das intervenções eletrônicas moh legais em “Vocalize My Luv” e “Otoma Da Naba”. Se você gosta de ouvir uma banda tocando bem, improvisando, suingando, e cada músico fazendo algo interessante, eu não tenho palavras pra te recomendar esse disco o suficiente.
Njerae — Four Letter Word (2025)
Preciso confessar que eu ainda não superei o Fountain Baby, disco de 2023 da Amaarae. A performance dela no Tinydesk só piorou a situação. Mas o Four Letter Word, EP recém-lançado pela cantora queniana Njerae, traz um afropop melodioso, com claras influências do R’n’B e do soul contemporâneo, tem me ajudado a desapegar.
Infelizmente, é um trabalho curto: 4 faixas, 12 minutos. Felizmente, ele é impecável. Já abre com a ótima “Fight For You”, uma faixa suingada na qual um arranjo eletrônico com batida marcada e harmonia suave serve de pano de fundo para a linda voz da cantora, que canta em inglês e no idioma quicuio.
Esse é o padrão desse trabalho. Njerae quase nunca sai do holofote, e ocupa bem o espaço, mas as produções que emolduram sua voz também não fazem feio. “Beg For It”, a linda segunda faixa, é uma balada bonita com refrão intenso, marcado por harmonizações vocais, com teclas e guitarra suave por baixo.
“Decide” por sua vez, contrasta uma melodia melancólica com aquele que talvez seja o beat mais dançante do disco. E “Hipnotize” fecha com outra batida irresistível, mas com clima mais sensual. Eu ouvi tanto esse EP que chegou a atrasar essa newsletter: em vez de ouvir coisa diferente, eu voltava nele. Não se ofenda, mas não me arrependo.
Sivert Høyem — Dancing Headlights (2025)
Imagine o seguinte: você vive em um país situado na extremidade oposta à do Brasil no índice GINI. É uma noite chuvosa. Você padece de azia e, sobretudo, dor de cotovelo. Por serem seus únicos problemas na vida, eles parecem enormes. Você quer curtir a sensação, por isso entra no seu carro velho mas confiável e precisa escolher um disco pra ouvir dirigindo pela chuva. Dancing Headlights, do Sivert Høyem, é a escolha certa.
Esse é o oitavo trabalho solo do cantor e compositor norueguês veterano, que está na ativa há mais de 30 anos. E logo na faixa-título que abre o disco, a precisão da escolha se escancara conforme os faróis dos carros de trás dançam no retrovisor. Uma balada lenta e soturna, mas enérgica. A maneira como a bateria, a guitarra ou talvez os vocais foram gravados, com bastante som do espaço, evoca a chuva que cai. E a modulação no pré-refrão conversa com a grandiosidade do fenômeno natural e das suas emoções.
As composições de rock, embora introspectivas, frequentemente trazem também intensidade sonora, tipo nos discos do The National antes deles entrarem em coma (de 2010 pra trás, portanto). Como no refrão grandioso de "Love Vs. the World", ou na potente "Hurdle", cuja guitarra é tornada crocante pela sutil distorção e pela escolha de notas dissonantes. Ou ainda nos acordes gigantes que abrem "Living It Strange" antes de que o barítono bonito de Høyem entre.
E claro, tem também as faixas mais tristonhas, como a morosa e reverberante "The Great Upsetter", ou "Hollow", que lembra um pouco a clássica "My Way" do Frank Sinatra em releitura mais contemporânea. Encerrando com a gravação ao vivo de uma faixa inédita, esse é um disco curto: 8 faixas e 32 minutos. Tempo suficiente para você chegar de volta em casa, pendurar as chaves, tirar o calçado e tomar um gole de algum destilado forte antes de deitar com a sensação de ter aproveitado bem o tempo.
Sempre é tão gostoso quando chega nessa parte. A lembrança das músicas legais, o senso de trabalho concluído, imaginar o que as pessoas vão achar desses artistas… Nem sempre o período entre esses encerramentos é agradável, mas imaginar que outro desses chegará em breve ajuda o tempo a passar melhor.
E você, como tem passado? Espero que bem. Espero que tomando bastante água, apoiando como pode os artistas de que você gosta, amando com intensidade e generosidade as pessoas que te fazem bem. “Uma vela acende mil outras sem que sua chama se enfraqueça: assim também o amor”, diz um ditado budista. Daqui uns 30 dias nos falamos novamente. Beijos.